sexta-feira, 6 de junho de 2008

"ROSA INTACTA" de ANTÓNIO RAMOS ROSA



“ROSA INTACTA”
de ANTÓNIO RAMOS ROSA

“Rosa Intacta”, é uma experiência surpreendente dentro da poética de António Ramos Rosa. Apesar de tudo logo reconhecível, pelo vibrante e rigoroso modo dele construir a poesia, a talhar cada palavra, a conceber cada verso, com o seu modo inconfundível. Seguindo um mesmo traço-lastro-rasto: de claridade intensa do sul e do solar, do sal da aragem marítima, trepando rutilante, e talvez abstracto, pelas cordas mordidas pela salsugem dos mares e do sonhado.
Mas em “Rosa Intacta”, e pela primeira vez na poesia de António Ramos Rosa, curiosamente, o que era seguro tornou-se instabilidade. Quer dizer, tudo o que parece inteiro apenas simula sê-lo, e o que em princípio está incólume, indemne, é pelo contrário cousa frágil, franzina, fátua; matéria de partir e de quebrar, dúbia, ambígua na sua presença dúctil e dual, naquilo que surge como sendo corpo no poema e, simultaneamente, corpo do poema. Portanto, poema a transfigurar-se em corpo feminino, mas logo tornando-se, antes de mais, corpo da própria literatura.
No entanto, erótico?
É preciso dizer, que durante a leitura destes poemas escritos há cerca de vinte anos, e que só agora Ramos Rosa reúne, interligando-os num mesmo elo entrançado, num mesmo laço e nó, abraço-baraço, fica por demais evidente haver neste livro uma veemente intenção erótica. E essa será a sua marca de água: diferindo da maioria das obras literárias do género, pela interna interacção recíproca na abordagem dos contrários. Ou seja, nele existe um discurso poético ao mesmo tempo iminentemente corporal e, por que não dizê-lo, de sensualidade amorosa. Organizando-se entre essa sensualidade extremada e a ascese, entre a abordagem do interdito e a transcendência. Entre a animalidade. – “Viva real animal”, como reconhece o poeta – e a imanência.

“ROSA ROSAE”

Discurso do desejo, pois, e da pureza.
Discurso que se assume na corporalidade, perpassando pelo tom daquilo a que Roland Barthes chamou “extrema solidão”.
Mas, sendo “Rosa Intacta” pujante e transbordante, de feminina nudez jubilosa, essa solidão parece anular-se, surgindo no seu lugar a luminosidade da escrita, por seu turno recriando a penumbra fascinante e indiscutível, onde os corpos se fundem, mas igualmente se confundem, vivificam no que lhes é proibido.
E “Rosa Intacta” contém esse júbilo, embora apenas como se fosse vulto na sua forma imprecisa, inflexão erótica caldeada pelo ritualismo, pelo lirismo, de onde se vai desprendendo uma imagética quase arcádica, enredada numa permanente toada ou gemido surdo. Através dos quais o corpo e a sexualidade da amante-amada se apresenta: idealizada, sonhada e fantasmática. Ou seja, sublimada pela voz do narrador-poeta-amante, que nos dá a ver uma mulher elaborada, moldada pelo olhar, pela poesia e pelo seu desejo ardoroso, que a inventa, a canta e a fantasia. Qual Pigmaleão, criando-a, afeiçoando-a, à imagem e semelhança daquilo que o seu imaginário mitifica, no que diz respeito ao entendimento do feminino.
Levando-a a transcender-se.
E mesmo assim permanecendo dual e dividida, entre o carnal e a espiritualidade. Porque, como explicou Lou Adreas Salomé: aquilo que “em nós rodopia de mais corporal e também de mais espiritual, pelo menos na aparência, e de mais supersticioso: liga-se totalmente ao corpo, mas também totalmente ao corpo enquanto símbolo, como hieróglifo fisiológico daquilo que desejaria deslizar na nossa alma pela porta dos sentidos, para neles despertar os sonhos mais audaciosos: misturando pois, a posse e o vago sentimento do inacessível”.

MINHA ÚNICA

Referindo o modo como o desejo e o amor “fazem de nós criadores para lá das nossas forças. Eleva-os ao papel de encarnação de toda a busca, não só entre nós e o nosso objecto de desejo erótico, mas também entre nós e todo o alto valor na direcção do qual projectamos os nossos sonhos”.
“Com um cerrado ímpeto
abraçou-me.
Senti a tensão eléctrica do seu corpo,
a luxuriante suavidade de uma lua,
a verde plenitude da folhagem,
um frenesim sedento,
a lisa e longa voracidade de uma cobra,
a vertigem de uma estrela.”

Metáfora. Transfiguração. Metamorfose.
Portanto, ela, metáfora do sublime, mas terra, mas rosa de beleza intacta, ela sensual e excessiva e sedutora mas mater, mas única. – Minha única, como Abelardo tratava Heloisa nas cartas de amor que lhe enviava. E António Ramos Rosa, em parte, confirma-lhe a exaltação amorosa, neste verso: “Era a primeira mulher, a única, a de sempre”.
Aquela, pois, que é feita do mesmo material das deusas, das parcas, das ninfas, das corças. Aquela que se equipara à natureza, perto dos “incandescentes cimos”, dos rios e do arvoredo, “da argila plenamente solar” e das “redondas dunas”...
Digamos, da própria criação liberta.
Mulher inicial, ou mito-realidade; mitificada a partir da sua essência, num mágico fusionamento: água, fogo, argila.
Musa.
Tão perto e magnífica, mas afinal inacessível. E embora terrena tão distanciada e intocada-intocável. Em “Rosa Intacta”, inserida na categoria dos elementos naturais, emergindo das forças arcaicas

“Quantos prodígios exactos nesse corpo
de simetrias ardentes, de redondas geometrias!
Lavrado pelo vento, modelado pelo fogo,
polido pela água, de incandescentes cimos,
de espumantes funduras sequiosas!
Dir-se-ia um ramo do esplendor o torso oblíquo
onde dois pequenos e redondos seios latejam.
Dir-se-ia um navio pela alta simetria
das suas pernas brancas. E que dizer do rosto?
Talvez três palavras: estrela, alma, água. (...)”

Estrela: portanto, inatingível.
Alma: portanto intocável.
Água: portanto indizível na sua esquiveza fria.



CORPO FEMININO

Na verdade, mais do que mulher comum, natureza. Ou melhor ainda: mais do que corpo feminino: corpo da própria natureza. E que neste livro de António Ramos Rosa, se transmuta, tal como os sentimentos neles incendiados: plenitude, desejo, amor...
Sentimentos que em “Rosa Intacta” se sublimam em criação estética. E como escreveu Roland Barthes: “Fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estética: o mito socrático (amar serve para criar uma multidão de belos e magníficos discursos) e o mito romântico”.
O corpo-mito, portanto, através da fala poética, na simulaçãp da posse perante o anseio e o apelo do inacessível. Na (im)possível instrução da amada; e nesse jogo equívoco, surge igualmente o desejo que ela desencadeia.
Ela, objecto erótico. Aquela pela qual se anseia.
O lado oposto do masculino: Outra. A estranha, a misteriosa, a insondável, o “continente negro” de que falava Freud, a indesvendável, a enigmática acerca da qual António Ramos Rosa escreveu no primeiro poema de “Rosa Intacta”, dedicado, significativamente, “À mulher em carne viva”:
Viva real animal no teu acto soberano
soberana oferenda
nunca vivida antes
sempre e nunca
num único momento ignorado
na minha sede
no meu ardor sem exemplo
no espanto do teu mistério de mulher (...)”
Mas, em “Rosa Intacta”existe uma mulher real, de face límpida e clara, num último poema inesperado, para mim o mais belo de todos os poemas deste livro. De uma carnalidade cintilante, plena, perfeita.

A sua face é a minha lâmpada,
acordo com ela e sigo no meu barco.
Sinto-lhe o hálito e o odor a maresia
a redonda força dos joelhos.
Vou palpando palavras nos seus músculos
ou nos seus duros tendões flexíveis.
Por vezes vou colher um vertiginoso vocábulo
no violento navio das suas ancas.
Quando adormece na sossegada hora
também adormeço sob o doce peso
das suas pálpebras.
A água ondula sob a luz resplandecente
e ela é a tranquila felicidade do instante.
Só a brisa conduz o delicado barco
feito de folhas e de pequenas aves.
Neste maravilhoso instante de sossego
a alma está inteira com o seu amante
plenamente aberta na respiração perfeita.

Erotismo? – torno a perguntar, duvidando. Experiência mística, afirmaria Georges Bataille: “a poesia leva ao mesmo ponto que leva cada forma de erotismo; à indistinção, à confusão de objectos distintos. Ela leva-nos à eternidade, ela leva-nos à morte, à continuidade.”
Ou seja, não importa se “Rosa Intacta” é ou não poesia erótica. Interessa que é excelente poesia.
E termino, citando Rimbaud:
“A poesia é a eternidade. É o mar indo com o sol”.


Maria Teresa Horta


Lisboa, 20 de Outubro de 2007




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