segunda-feira, 16 de junho de 2008

«Ciclo de Criação Imperfeita» de Seomara da Veiga Ferreira



«CICLO DE CRIAÇÃO IMPERFEITA»
DE SEOMARA DA VEIGA FERREIRA

Ajudar a repôr no mundo um livro, atribuir-lhe uma nova existência, querendo fazer com que, tal como Fénix renasça das próprias cinzas, e ignorando a sua anterior existência, se fale dele imaginando ser este o seu verdadeiro início, seu princípio de fala-escrita, seu parto, seu lado de luz primeira, é uma tarefa equívoca, ambígua. E tanto mais dúbia quando o seu conteúdo diz respeito à arte do voo.
Logo, na sua essência: ilusório.
E assim sendo, eis-nos em pleno terreno do indizível-dito, na abordagem da matéria do sonho, do intocado (mas não intocável.), do suspeitado, da transcendência.
Ou seja: trata-se de poesia.
No presente caso, um livro que deixou para trás um outro nome, como uma gasta pele de cobra, e aqui aparece hoje com o seu título actualizado, que em si mesmo já se auto-avalia: «Ciclo de Criação Imperfeita», de autoria de Seomara da Veiga Ferreira, escritora por demais conhecida, autora de uma excelente obra ficcional.
Mas, e há sempre um mas em tudo, a Seomara, ela própria embora sob pseudónimo, tinha no seu passado, ou melhor, tinha na sua história um volume de poemas editado, que ela num acto de revolta contra as gralhas e os inevitáveis erros de tipografia, rejeitara. Deitara fora, abandonara num acto de rebeldia ilusória. Pois, habitualmente, aquilo que julgamos estar bem enterrado no passado, acaba por tornar até nós, para nos fitar nos olhos, quem sabe se a querer ajustar contas connosco. Mistérios e segredos, que a maior parte dos escritores ocultam nas suas tão míticas arcas ou gavetas sem fundo possível...
Assim sendo, numa espécie de facécia do destino, Seomara da Veiga Ferreira viu cair-lhe nas mãos a sua antiga poesia, a exigir-lhe ser reeditada, o que está a acontecer, depois de vista-lida e revista e emendada, burilada, aperfeiçoada pela sua autora, com uma sabedoria acrescentada pelos anos de muitos argutos e precisos romances, dos quais sou incondecional admiradora. Ajustamentos que, nos permitem ir mais fundo na sua matéria translúcida.

TELÚRICA E AVASSALADORA

Assim, em «Ciclo de Criação Imperfeita» acabamos por distinguir na sua matriz-raiz: o húmos, as águas, as nascentes, as emanações, as cisternas, o grão de fertilidade-criativa. Idênticas nas suas consistentes estruturas matriciais: literárias, fantasmáticas, filosóficas, àquelas a que a romancista já nos havia habituado. Digamos que, curiosamente, a obra futura de Seomara já estava toda ela contida nestes versos bravios e desassombrados, de uma inesperada força telúrica, quer na tessitura da sua linguagem, quer na sua transbordante contestação.

“Para bordar o diagrama do Universo
a minha fronte mordendo o Fogo e a Lua
num vulcão de lilases cristais.
Microscópicas abelhas de jade, a mel
ergueram a Pirâmide, o Círculo, a Fuga
no dorso sensual das auroras boreais.”

Em quantos romances desta escritora, não encontrámos, de diverso modo e estrutura literária, este discurso envolvente? Numa entrega tão completa e ardente à escrita, que nesta colectânea de versos poderá enganosamente levar a quem a lê, encontrar erotismo onde existe, isso sim: lava, incandescência, intemporalidade, envolvência cúmplice com a ira das deusas, com a seiva intocada da natureza.
Terra mãe.

“Vem a mim, abertos teus braços em flor!
segue de meu passo ao alter o trilho.
Deus está connosco no acto do amor
mesmo que não se gere um filho.

Vem à luz do sol, em pétalas e fruto
como se a verdade ainda existisse...
Eu sou a terra que não vês há muito
– a Terra Mãe sempre forte e triste.
(...)”

Poesia que em si mesma contém uma surpreendente dimensão clássica, toda ela, porém, erigida numa modernidade desconcertante. Sendo esta a faceta, o lado, o lastro que mais me fascina no conjunto destes versos, que através da sua leitura nos transporta até universos longíquos, onde tudo tinha uma grandiosidade, uma vastidão e esplendor. Uma alargada visão da vida em contraste absoluto com a pequenez dos nossos dias.
Aliás, são incontáveis as vezes que escutei a Seomara desabafar, sob o efeito da grande indignação que sempre lhe provoca a mediocridade, o comezinho, a hipocrisia, a intriga, a injustiça, o compadrio: “Eu não sou daqui, eu sou romana, Teresa, eu sou romana!”.
Eu diria antes que Seomara da Veiga Fereira é aquilo que escreve.
Com uma frontalidade, uma exactidão e um talento inegáveis.

DISCURSO FEMININO

Costuma dizer-se que a poesia não tem sexo, mas eu ao longo dos anos tenho vindo a afirmar o contrário, com obstinação. Não estando sózinha nesta certeza... A poetisa Sylvia Plath, perguntou com ironia no seu diário: “como é que a poesia não tem sexo, se até as cerejas tem sexo?” E a mãe da psicanálise, Melanie Klein, garantiu-nos, que “tudo tem sexo na vida”...
E eu acrescento: até os anjos! Os anjos que voam, também, por dentro de «Círculo de Criação Imperfeita», na realidade escrito entre 1968 e 1971, e que hoje reaparece, a fim de nos dar a ver um discurso com um registo mítico e feminino indiscutível: pelos meandros sinuosos da frontalidade, pela sua linguagem captiva e simultaneamente fatal, fiada através de uma sensibilidade feminina, inquieta e ferina, com palavras elaboradas a ponte de crivo e mar de onda, a vir beijar o corpo na sua quentura exposta, como os homens raramente têm usado-ousado escrever, desvendando...

“Vi-te nos tempos imemoriais da planície branca
quando erguias ao Crescente o cordeiro em Sumer.
Trazia no meu colo enrolada a ruiva trança
minha sagrada e forte, quente trança de mulher.


Pentei meus cabelos no vale estranho do Egipto
cobri meus seios de súplicas e de medos
e no Nilo aberto em concha, espuma e mirto
segui teu navio nos meus olhos negros.

Tocaste sem saber a fímbria do meu vestido
quando fugimos de Jerusalém incendiada
Vim ao ocidente brumoso, abrupto, altivo
na linha do oceano cavei a minha estrada.”

Marca da diferença.
Incendiada.
A escritora inglesa Virgínia Woolf, considerava que o pensamento feminino tinha necessidade de uma sintaxe diversa, a conferir às palavras um ritmo particular, com imagens “de fluidez”, de acordo com as múltiplas zonas de prazer oferecidas pelo corpo feminino, na sua plenitude. E acrescentava, sonsa e inteligente: “Não entendo o escândalo que se levanta quando se fala de escrita feminina, pois quanto a mim, essa diferença só enriquece a literatura”.
Literatura, a que Seomara da Veiga Ferreira com a sua escrita lavrada no coração da coerência e da consciência, tem acrescentado vertigem, investigação, rigor e intensidade. Obra que estes poemas, arrisco-me a dizer cabalísticos, cedo abandonados pelo caminho, ironicamente, acabam por vir quando menos se esperava, consolidar:

Com a sua influência histórica.
Com a sua profundidade.
Com a sua atadura de brilho e cintilação de diamante, feita de astros onde a vida e a literatura tomam forma.
Maria Teresa Horta
Lisboa, 4 de Junho de 2008

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