segunda-feira, 23 de junho de 2008

PELO SONHO


PELO SONHO.

por Pompeu Miguel Martins

Susana Afonso apresenta-nos a história de Jaques, «um menino meigo, de cabelos sedosos, com cheiro a baunilha e olhos cintilantes, que acabara de chegar a Portugal, há meia dúzia de meses, e estava, agora, a frequentar o 1º ano do Ensino Básico» A aventura de Jaques é uma aventura pelo nosso tempo e pelas questões que sempre levanta este nosso tempo, numa metáfora eficaz na sua expressão lúdica, pedagógica e cívica. No entendimento de Mercedez Manzano (1985), existem três elementos fundamentais na definição do conceito de literatura para a infância e juventude: simplicidade criadora, audácia poética e comunicação adequada. «A simplicidade abarca a obra na sua globalidade: enredo, tema, estrutura e linguagem. Simplicidade não significa simplificação.»Efectivamente, ao contrário do que possa parecer, a literatura para a infância não é infantil, mas destina-se a um público infantil. Do mesmíssimo modo que um pediatra não aplica nas crianças terapias básicas ou simples, também um escritor para as crianças terá que ter a noção de que o que se lhe exige é o mesmo que a um escritor para adultos, porém utilizando a criatividade e os meios de que dispõe de modo a obter uma resposta positiva e eficaz da parte dos seus leitores que são efectivamente crianças com um universo próprio e com um modo de construir o seu imaginário adequado à fase de desenvolvimento cognitivo e de personalidade próprios.Este item está bem presente na atitude criadora de Susana Afonso, que ao longo de todas as páginas deste livro manteve um esforço louvável para construir um enredo coerente, em torno de temáticas que vão de encontro à realidade em que vivem actualmente as nossas crianças, estruturando a sua história com reconhecida coerência.Regressando a Mercedez Manzano, «a segunda nota caracterizadora da literatura para a infância é a poesia, intimamente ligada com a linguagem. O escritor deve conceder uma margem à criatividade e à audácia poética. Nessa progressão poética e criativa facilita-se à criança o acesso ao texto. A criança, em contacto com a audácia poética do texto, percebe a quebra de rotina e situa-se na literatura como um lugar em que pode aperceber-se da sua identidade e tentar reconhecer-se».Eis um ponto nevrálgico da importância que livros como esta história de Jaques possui no desenvolvimento do ser: o reconhecimento de valores com a saudável convivência familiar, a amizade, a dádiva, a solidariedade e o sonho estão muito presentes em todo a obra, diluídos num universo identitário infantil que certamente não criará barreiras para que, nesse mesmo universo da infância a criança possa, pela leitura, experimentar os respectivos valores, através de uma história.
«Como terceira e última nota caracterizadora deste tipo de literatura destaca-se o simbolismo e a comunicação. Uma autêntica comunicação é a melhor motivação para provocar o desejo de ler, para saber escolher».Mais importante, ou pelo menos mais fundador, do que o conhecimento exaustivo das teorias literárias é a existência na pessoa do desejo de ler. E para que esse desejo se manifeste é necessário que a literatura chegue até nós de modo a que cada um possa sentir que há ali um lugar que é seu, uma interpretação que é sua, um entendimento único e intimo. Não se lê sem intimidade, sob pena de considerarmos estranho e eternamente outro o universo proposto, a que se não regressa pela impossibilidade que tivemos de não criar uma relação. Tal como no relacionamento humano, também a literatura começa por ser uma proposta de relacionamento interior e projectado de imediato na nossa irrepetível forma de ver e de sentir o mundo.Susana Afonso, neste seu primeiro livro, teve já presente esta ideia. Na forma como construi a obra, fê-lo de maneira a que quer a poética, quer o contexto, quer o conteúdo pudessem constituir-se como acrescentos ao que as crianças que a lerão irão sentir após a leitura. E o que sentirão elas? Provavelmente para algumas o questionar de situações pela primeira vez, o que é sempre um momento muito rico para cada um, a aprendizagem de conteúdos que vão desde as leis da física, da matemática, da música entre outros e o reforço da aprendizagem do sonho. «É pelo sonho que vamos» dizia-nos Sebastião da Gama e é certamente por aí que esta obra também se inscreve.Enquanto elemento socializador esta história de Jaques dá conta da existência de uma diversidade de modelos sociais, sendo que o confronto dos mesmos terá como consequência o alargar de perspectivas sobre a vida de cada um enquanto elo de ligação permanente à vida dos outros.A construção de uma personagem que vem de outro país para Portugal e que sente a inevitável estranheza da língua e da cultura é o primeiro dos desafios que Susana Afonso lança aos seus leitores, fazendo-os passar pela experiência que a leitura sempre proporciona para que com ela possamos sentir o personagem e com ele experimentar as sensações da interculturalidade. Por outro lado, ainda no registo dos temas da nossa contemporaneidade, a autora caracteriza o pequeno Jaques como filho de uma família de pais divorciados, experimentando a distância da mãe e dos irmãos criando aí uma espécie de argumento para o retomar do sonho e da fantasia. A distância da família que habita em Paris faz a ponte para uma certa mistificação de formas de vida urbanas, contrastando com o espaço de intimidade do pequeno Jaques, existindo neste livro, um incentivo ao romper de preconceitos, utilizando para isso a propositada desconstrução de ideais tipo. A autora consegue isso em vários momentos como são exemplo o Lobo, sempre encarado com feroz animal, aqui apresentado como personagem alegre e companheira, ou da madrasta, habitualmente conotada como um ser malévolo e em competição permanente com a figura da mãe, aparecendo neste livro como alguém a quem também compete a participação positiva no desenvolvimento afectivo do herói da história. O quebrar de preconceitos é um desafio civilizacional, continua ser para cada um de nós um desafio de todos os dias. É daí que surgirá uma sociedade mais justa e mais compreensiva resultando a justiça e a compreensão numa sociedade mais inclusiva que será certamente uma sociedade com mais paz, conforme todos ambicionamos. Do ponto de vista pedagógico, esta obra é também um elemento de exploração de temáticas que se relacionam com a educação cívica: desde a necessidade de protecção do meio ambiente à de mudança de hábitos quotidianos que farão com que possamos viver num mundo mais equilibrado e harmonioso. Porém, esta é também uma obra que poderá ser de grande utilidade para outro tipo de leitores que são os pais ou os professores, pelo que ela nos oferece enquanto instrumento de educação. Seja para a nossa vida diária enquanto pais, seja na planificação de uma aula sobre os conteúdos versados nesta história, «Viver Paris ao som de um pífaro» , é um útil contributo para que se leve a bom porto a discussão em torno de todas as questões que aí se levantam. Um livro que deixa no ar inúmeras perguntas e outras tantas possibilidades de actividades pedagógicas, de respostas, de levantar plataformas onde seja possível erguer nas crianças pensamentos maiores, cumprindo assim com aquilo que deve ser a principal missão de todos nós que contribuímos para a educação: ajudar a criar cidadãos que deixem ao mundo um mundo melhor do que aquele que encontraram. Foi exactamente isso que Susana Afonso fez, ao deixar o seu contributo e é com ele, pelo sonho e pela utopia, que nunca devemos baixar os braços nessa responsabilidade que é de todos, ajudar a enriquecer os sonhos das nossas crianças para que tenhamos a certeza que com isso lhes estamos a enriquecer os dias.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Labirinto lança inédito de Susana Afonso


Labirinto lança inédito de Susana Afonso
A Labirinto apresentará ao público já no próximo dia 21 de Junho (Sábado), «Viver Paris ao som de um Pífaro – o Sonho de Jaques», primeiro conto infantil de Susana Afonso, com ilustrações de António Santos.
«Viver Paris ao som de um Pífaro – o Sonho de Jaques» constitui, segundo o presidente da editora, João Artur Pinto, “uma das apostas de que mais se orgulha a Labirinto, a de trazer a público novos valores literários. Aposta essa, que julgo ganha, quer pela diversidade e géneros literários já editados, quer pelo número crescente de autores e até mesmo pelos leitores conquistados”.
A sessão de lançamento decorrerá no próximo sábado, dia 21 de Junho, na Sede da Associação Cultural e recreativa de Fornelos, pelas 16horas, e contará, entre outros, com a presença do escritor Pompeu Miguel Martins, a quem caberá a missão de apresentar ao público presente a obra de Susana Afonso

Susana Marina Freitas Oliveira Afonso
Nascida a 09/12/1981 é natural do concelho de Fafe
Licenciada no curso de Professores do 1º Ciclo Variante, Educação Visual e Tecnológica pela Escola Superior de Educação de Fafe.
Frequentou múltiplas acções de formação complementares nas áreas da Música e do teatro.

Actualmente lecciona na Associação Cultural e Recreativa de Fornelos e é professora co-tiular do 1º ciclo nas áreas curriculares disciplinares de Educação Visual e Tecnológica; Educação Moral e Religiosa Católica.
Foi co-fundadora do Grupo de Teatro de Travassós – Fafe; Coordena o Grupo de Teatro de Rebordelo – Amarante.
E é promotora da Oficina de Teatro da A.C.R. de Fornelos.
Desenvolve no momento a investigação preliminar para Doutoramento nas Áreas da Expressão Musical e do Autismo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

"Cartas Poéticas" Entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira


“CARTAS POÉTICAS” Entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira

Dois poetas – António Ramos Rosa, já hoje considerado o mais premiado dos poetas portugueses vivos e Manuel Madeira, outra referência marcante da poesia moderna portuguesa - tornam públicas 134 cartas, das muitas que trocaram entre si, ao longo da vida.
São textos poéticos de reflexão, de auscultação, de intimidade, nascidos de um conhecimento mútuo destes dois poetas. São epístolas iluminadas por uma confidencialidade deliberada, expressão do estranho modo de conceber e partilhar, assente na poeira dos dias e no anseio da luz contemporânea da suprema arte de revelar os seres e as coisas.
De uma forma quase diarística, ambos evocam o tempo que foi, naquele presente/passado feito de cumplicidade, de modo a permitir estremecer o instante de futuro, vivido pessoalissimamente, de um futuro que ainda não o é, e sempre se colocou como saudade do presente.
“Os passos que damos vão através do tempo, / ou seja do que não é ainda e está a ser já / É este vazio que se preenche que é o tempo, / que não é vazio em si mas para nós” (ARR)
“Consubstanciamos o passado e o presente / (…) na trajectória imemorial do tempo” (MM)
Ramos Rosa e Manuel Madeira invocam vivências traduzíveis, lugares da infância, estações da adolescência, planos de acção e de lazer, numa mesma perspectiva de ideologia, porventura retidos numa visão quase esquecida e secreta, metaforicamente trazida ao instante da escrita de uma forma real e plena de autenticidade.
E nessa rememoração perseguida, perscrutante, nesse tacteamento sensitivo relevam afloramentos de impenitentes revoltas juvenis, de um tempo remoto de não regresso e ainda por explicar, que devolve a todo o momento a nostalgia de um outro, mais “medonho”, que “nos apertava os pulsos e tolhia os movimentos”, um tempo em que “os livros chegavam por invisíveis correios”, um tempo de balanço dos rescaldos, de desejos não enunciados, de um contrariar insolvente, um tempo estriado na vida resistente.
Nesse trazer de novo, eis duas vidas consubstanciadas num conhecimento contemplativo, de reflexão, de impressionabilidade.
Em Ramos Rosa deparamos com um saber poético que o leva a olhar com desvanecimento o futuro da poesia sob o signo do “fazer poético”, preponderando no poema aquilo que mais seguramente habilita um poeta a sê-lo ao nível dos grandes, a fidelidade à palavra que no homem é a verdade última do sangue, da existência e da alma.
Em Manuel Madeira, sobressai a metaforização tácita, construída sobre um desenho leve, quase musical, seguidor de contornos indefinidos, a adjectivação eloquente e procurada, a fulgurante inebriação das ideias exposta com a simplicidade de quem adoptou a poesia como companheira de uma vida.
A obra deste poeta, revela uma espécie de metempsicose panteísta, toda ela feita de fidelidade à terra, onde mergulham as raízes mais fundas e de onde tudo volta a emergir para uma reconciliação universal, para uma suprema harmonia entre a luz e a sombra, plenitude e carência, presença e ausência.
Ambos os poetas correspondentes estão há muito no limite físico da poesia, sob o signo da profecia e da interrogação.
O que eles realizam, esse transformar a existência em existência poética, esse apoderar-se dos poderes que talvez só a mitologia possa conferir apenas a um semideus, e tentarem dominar com eles as várias faces de um destino, porventura adverso, até converter toda a realidade em realidade poética não é uma aventura vulgar para qualquer criador de arte.
Esta poderosa aventura, que encetaram e percorrem, é uma forma subtil de apagar os poderes temíveis que não deixariam sossegar o Homem se ele se atrevesse a imaginá-los reais.
Assim, no real convertido em mito tornava-se impossível imaginar que o mito pudesse ser real. É que, desde tempos imemoriais, cada poeta foi a verdade da sua própria poesia e com ela preparou os caminhos de muitos outros poetas que lhes sucederam.
Hoje, carteando-se, António e Manuel trazem-nos a poesia através de uma coloquial lembrança com o leitor, correndo todos os riscos de encarnarem a imaginação na vida, e todos os perigos, que desse gesto possam derivar.
Nestas “Cartas Poéticas” vive o primado do espírito poético, numa permanente interrogação e constatação, estreito espaço onde a uma folha se achega outra, onde cada pausa é interrompida por nova carta, nova ideia vem espreitar um lamento, novas certezas vingam dúvidas que porventura possam existir.
Aqui, a palavra poética assume uma presença vigorosa, mas também encantatória, mágica, activa, subtilmente reveladora e superante.
São 134 cartas em concatenação precisa, sem desvio do olhar, sem se deixar de sentir o respirar que as anima, onde cada autor sucede o outro, sucedendo-se a si mesmos, num discurso poético rigorosamente construído, afectivamente correspondido.
Nestas missivas, Ramos Rosa e Manuel Madeira são os leitores por excelência deles próprios. Acompanhando-os, estamos nós, os leitores das suas obras, em particular destas cartas.
Temos, pois, dois poetas maiores. Duas almas de eleição.
Com António e Manuel estamos perante uma poética baseada na atitude testemunhal, na revivência do “eu” e do “tu” no que a epistolografia pode exprimir, e que implica necessariamente a condição intersubjectiva do discurso, o conhecimento da própria criação, a comunidade e a comunhão dos sujeitos no horizonte da expressão poética. E o testemunho pressupõe a fidelidade como princípio na contínua relação transformadora do sujeito com os outros.
“Vejo o sol mas não sei se quero ver o sol / se ele nada me sugere para além da sua luz de cal / e assim sinto o vislumbre de um logro, um luminoso sofisma. / Prefiro estar no interior de uma nuvem silenciosa / e ver a terra na sua ondulação azul / com os seus deslumbrantes pomares as suas tranquilas florestas / como se ela fosse a mão pródiga de veias solares / e de ramos sinuosamente entrelaçados / como uma fêmea nua de voluptuosa pujança.”
(…) “Não, o sol não chega para apagar a monotonia cinzenta / deste árido círculo em que perdemos o rumo / dos vergéis azuis e dos estuários brancos” ARR (51)
“Ter a margem de um rio tranquilo para companhia / é uma ajuda inestimável e eu vou contigo nessa caminhada / acompanhados pelos eucaliptos e pelas nuvens / meditando em silêncio como nós e o vento que não fala” (41)
(…) “Espero alcançar a compreensão do caos / dissolver-me em estilhas na amplidão do espaço” MM (27)
Por esse tempo, o tempo epistolográfico de António e de Manuel, o fogo da criação esteve para além das privações, do exílio das profundezas, das grandes causas pelas quais estes dois poetas lutaram, do sentimento do abandono que experimentaram nos seus próprios percursos, em termos artísticos e de concidadania.
Eles foram, o que eles, mesmos, se fizeram e são.
Fiéis a eles próprios, e às suas ideias, coerentemente porfiando em campos de acção diversos, conscientes das suas obrigações de expressão, de divulgação da mensagem e da palavra poética.
Criadores de arte por excelência, na obra de qualquer destes poetas, são visíveis, uma experiência poética depurada, um crescimento cada vez maior de pendor meditativo e uma concisa e rigorosa perfeição da linguagem. Eis, por conseguinte, exemplificado, um novo modo de dizer, talvez o dizer até ao “grau zero” da linguagem e suprimido pelo não dizer, como nos deixou dito Rolland Barthes.
A cada carta, carta que se lê, carta que se responde, o acto criativo nasce como onda sufocante de seiva, como movimento inteligível na aragem da tarde e nos ombros da noite, metamorfoseando-se continuamente no texto poético, essa morada última das sombras dos mitos.
E entra, então, como coisa estranha e nova nesse tempo volvido, líquido, em que “havia cegos e surdos que falavam / e nos queriam cegar e ensurdecer” (ARR) (28), e entra igualmente através do olhar como mediador da consciência, matéria em dissolução, poeira dos memorializáveis momentos que se grita, acarretando a esperança de se poder restituir à luz essa ânsia dolorosa de penetrar o segredo das coisas, da descoberta finita do infinito.
Os poetas correspondem-se, lembrando o deslizar sonante e misterioso da adolescência, da juventude que exigia o sacrifício sublime da água, o enleio esgotante e mitigado de um tempo de luta, quando a vida se devia abrir nas páginas escorreitas e alvas de um livro e apetecia fugir à rotina dos dias, ao corrupio enfadonho das horas, encadeados eles mesmos pelas luzes que os absorviam.
Por esse tempo…
Por esse inolvidável e criativo tempo de descoberta… sente-se como Madeira o afirma, o inadiável “apelo das vozes distantes”…
ARR - “Era um horizonte de palavras novas, de árvores reverentes. / escrevíamos panfletos que às vezes nos fugiam dos bolsos / em revoadas que se confundiam com as aves. / Acampávamos em pinhais, cantávamos e dançávamos, / saudando o sol de um novo dia / e às vezes a polícia surpreendia-nos / com as metralhadoras aperradas contra nós. / Devorávamos livros proibidos apaixonadamente / reunidos em exíguos quartos ou solitariamente. / Não importa se muitos se enganavam adorando um déspota como um deus, / porque a verdade estava na sua oposição / à tirania que nos roubava o sol, / à liberdade e à justiça da palavra viva. / Vivemos duramente com obstinada paixão / mas vivíamos solidários e lúcidos na sombra / e a fraternidade era a nossa força e o prémio da nossa luta. / Vencemos finalmente, mas a madrugada da nossa liberdade / foi apenas um momento. O que se seguiu depois / é um sistema que não sabemos como combater / porque a sua teia é anónima, de uma violência esparsa / que nos impede a defrontação / com os seus disfarces e os seus estratagemas.”
Na frente do poema segue a luz, a plenitude tracejante do seu próprio movimento originário, o aceno familiar à ansiedade juvenil, às manhãs sem memória, à maturidade outonal e doirada da lembrança.
Nestas cartas, deparamos com a alegria do que se descobre e é exposto, uma serena alegria imorredoira. É que a poesia transcende – sempre, sempre - a simples comunhão a dois.
MM – “Vem de muito longe a nossa amizade fraterna / querido amigo António e o tempo então era jovem e sorria / e brincava desfolhando pétalas de alegria que nos atirava / por cima dos carcomidos muros que o ocultavam / (…) Manietados pelo medo e pela sombra da pide / que nos perseguia em plenos passeios / como aconteceu uma vez em Silves feitos prisioneiros / escondíamos os livros proibidos no chão dos quintais / e engolíamos papéis comprometedores em pedacinhos / durante os interrogatórios simulando soluços iludindo os esbirros / mas explodíamos em palavras e gestos eufóricos / quando nos encontrávamos casualmente na rua / como se tivéssemos encontrado a felicidade no inóspito deserto / Éramos tímidos e pobres mas trazíamos nos bolsos da alma / virtuais quantias fabulosas de valor incalculável” (…) “ que agora distribuíamos clandestinamente / em maços de panfletos cantando a liberdade / contra a ignorância e os seus dominantes exploradores / que viam em nós inimigos a abater” (…) (51ª Carta)
A perseguição política sangra abertamente no leito deste poema, verdadeiro alerta aos seres e aos olhares, invocando a dolorosa e combativa epopeia contra as forças fascistas.
Por esse tempo de juventude, estes jovens penetravam o segredo das coisas, sentiam a evocação dos sentimentos, de um acontecer que acabou por se ir estruturando nos dias. Vigiavam as enormes distâncias que vão das imagens às ideias, da história humana e da liberdade coarctada, a evocação do tempo das religiões dos mistérios, das que estão a morrer há muitos séculos, das que só os poetas entendem. É que muitos dos sentimentos e dos projectos dessas manhãs que percorreram as vidas destes dois autores na “imensa toalha do firmamento inteiramente desdobrada / numa plenitude que superava toda a sabedoria e era mais pura do que todas as preces” (MM) (12) vieram muito mais tarde a coincidir com os projectos de muitos de nós.
Cada um recorda-se, e recorda a imagem do tempo próprio e o tempo/ imagem que lhe pertenceu, trecho a trecho, carta a carta, deslizando pela espiral dos tempos, envolvido nas águas ocultas do desabrochar das consciências, em especial da consciência política que os ia invadindo.
E em cada elegia singular, pela dimensão poética, surge esse campo de sugestão e afectividade das palavras, as palavras no seu poder supremo, tal como as referiu Cecília Meireles do outro lado do Atlântico: “Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa! Ai, palavras, ai palavras, que estranha potência a vossa!”
Nestes textos epistolares, a variação referencial das palavras, com os seus ritmos, as suas intenções, passa pela sensibilidade plena do sentido, pela entoação que ficou perdida, pela sua própria memória colectiva e individual, acompanhando os movimentos da metáfora simbólica.
No entanto, quer na poesia de António, quer na de Manuel, surgem claridades - mais luminosas do que a água que espelha a luz – claridades que se avizinham na curva descendente dos dias passados, provocando na sequência epistolar um sentido de plenitude e de esperança, passados que foram tempos do maravilhoso, onde a invenção da dor, do intimismo e do constrangimento não deveriam ter tido lugar.
Na leitura desta estranha e sedutora poesia, ora matinal e clara como a adolescência, ora imbuída de toda a elegia do pretérito imperfeito, sentimo-nos tocados por uma densidade tão intensa, quanto à própria poesia entre nós tem sido possível atingi-la. É que aqui neste brotar memoriável, todas as raízes da inquietação e da procura da forma poética souberam impor uma humana medida a todos os recursos modernos da poesia. Nestas últimas décadas, a obra de António Ramos Rosa foi pontualmente frequentada e prezada por poetas e críticos, e por numerosos leitores.
Existe uma quase unanimidade em relevar em António a inventiva imagística, o fascínio do secreto e do simples, o simbólico constante, o tratamento rítmico ou melódico do verso, a sequência dedutiva oralizante, o exercício dos sentidos (vista, ouvido, tacto), as emoções elipticamente condensadas, sensitivas, sensualmente harmónicas e afectivas.
Tudo isto fez da poesia de Ramos Rosa, uma poesia de requintada qualidade artística, verdadeira bíblia do conhecimento poético.
Manuel Madeira é, de outro modo, um caso único na Poesia Portuguesa. Desde sempre poeta, só muito tardiamente veio a publicar parte da sua obra, com a saída do livro a que deu o título “No Encalço do Real Inalcançável”, antologia de toda uma vida poeticamente vivida. Em Manuel, a poesia surge límpida e fluente, possuída de uma rara perfeição imagística, acompanhada de um fino e cortante sentido de musicalidade verbal, uma poesia que se pode classificar como discreta e serena, por vezes desenhada palavra a palavra, sem preocupações estilísticas, sem excessos de significação.
Manuel Madeira apresenta-se ora reflexivo, ora inconformado, poeta da nostalgia da unidade poética que pretende transmitir, semeador de “grãos de silêncio que hão-de germinar em courelas de luz”, fazendo do acto poético um contacto luminoso com a criação. Perseguindo a palavra e a sua transfiguração, ciente que só a poesia pode fertilizar o deserto da existência, ele próprio, o poeta, confessa a finitude do ser na simplicidade e na mágoa do olhar: “ Sou um pouco do ar que se respira / pequeno grão de areia sobre o chão ignoto / agulha de pinheiro em breve cinza…”
Este discurso poético a duas mãos – as cartas trocadas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira - é algo de singular no nosso tempo, espelho de fascínio e complexidade, colóquio pensante, osmose quase perfeita entre realidade e palavra, assunção do verso como expressão intimista, lugar supremo de rememorações e vigílias. Para além do enriquecimento que a sua leitura poderá proporcionar a todos nós, estas “Cartas Poéticas” são - já - um monumento ímpar na Poesia Epistolar portuguesa, do nosso tempo.
VARELA PIRES
Faro, 21 de Maio de 2008

«Ciclo de Criação Imperfeita» de Seomara da Veiga Ferreira



«CICLO DE CRIAÇÃO IMPERFEITA»
DE SEOMARA DA VEIGA FERREIRA

Ajudar a repôr no mundo um livro, atribuir-lhe uma nova existência, querendo fazer com que, tal como Fénix renasça das próprias cinzas, e ignorando a sua anterior existência, se fale dele imaginando ser este o seu verdadeiro início, seu princípio de fala-escrita, seu parto, seu lado de luz primeira, é uma tarefa equívoca, ambígua. E tanto mais dúbia quando o seu conteúdo diz respeito à arte do voo.
Logo, na sua essência: ilusório.
E assim sendo, eis-nos em pleno terreno do indizível-dito, na abordagem da matéria do sonho, do intocado (mas não intocável.), do suspeitado, da transcendência.
Ou seja: trata-se de poesia.
No presente caso, um livro que deixou para trás um outro nome, como uma gasta pele de cobra, e aqui aparece hoje com o seu título actualizado, que em si mesmo já se auto-avalia: «Ciclo de Criação Imperfeita», de autoria de Seomara da Veiga Ferreira, escritora por demais conhecida, autora de uma excelente obra ficcional.
Mas, e há sempre um mas em tudo, a Seomara, ela própria embora sob pseudónimo, tinha no seu passado, ou melhor, tinha na sua história um volume de poemas editado, que ela num acto de revolta contra as gralhas e os inevitáveis erros de tipografia, rejeitara. Deitara fora, abandonara num acto de rebeldia ilusória. Pois, habitualmente, aquilo que julgamos estar bem enterrado no passado, acaba por tornar até nós, para nos fitar nos olhos, quem sabe se a querer ajustar contas connosco. Mistérios e segredos, que a maior parte dos escritores ocultam nas suas tão míticas arcas ou gavetas sem fundo possível...
Assim sendo, numa espécie de facécia do destino, Seomara da Veiga Ferreira viu cair-lhe nas mãos a sua antiga poesia, a exigir-lhe ser reeditada, o que está a acontecer, depois de vista-lida e revista e emendada, burilada, aperfeiçoada pela sua autora, com uma sabedoria acrescentada pelos anos de muitos argutos e precisos romances, dos quais sou incondecional admiradora. Ajustamentos que, nos permitem ir mais fundo na sua matéria translúcida.

TELÚRICA E AVASSALADORA

Assim, em «Ciclo de Criação Imperfeita» acabamos por distinguir na sua matriz-raiz: o húmos, as águas, as nascentes, as emanações, as cisternas, o grão de fertilidade-criativa. Idênticas nas suas consistentes estruturas matriciais: literárias, fantasmáticas, filosóficas, àquelas a que a romancista já nos havia habituado. Digamos que, curiosamente, a obra futura de Seomara já estava toda ela contida nestes versos bravios e desassombrados, de uma inesperada força telúrica, quer na tessitura da sua linguagem, quer na sua transbordante contestação.

“Para bordar o diagrama do Universo
a minha fronte mordendo o Fogo e a Lua
num vulcão de lilases cristais.
Microscópicas abelhas de jade, a mel
ergueram a Pirâmide, o Círculo, a Fuga
no dorso sensual das auroras boreais.”

Em quantos romances desta escritora, não encontrámos, de diverso modo e estrutura literária, este discurso envolvente? Numa entrega tão completa e ardente à escrita, que nesta colectânea de versos poderá enganosamente levar a quem a lê, encontrar erotismo onde existe, isso sim: lava, incandescência, intemporalidade, envolvência cúmplice com a ira das deusas, com a seiva intocada da natureza.
Terra mãe.

“Vem a mim, abertos teus braços em flor!
segue de meu passo ao alter o trilho.
Deus está connosco no acto do amor
mesmo que não se gere um filho.

Vem à luz do sol, em pétalas e fruto
como se a verdade ainda existisse...
Eu sou a terra que não vês há muito
– a Terra Mãe sempre forte e triste.
(...)”

Poesia que em si mesma contém uma surpreendente dimensão clássica, toda ela, porém, erigida numa modernidade desconcertante. Sendo esta a faceta, o lado, o lastro que mais me fascina no conjunto destes versos, que através da sua leitura nos transporta até universos longíquos, onde tudo tinha uma grandiosidade, uma vastidão e esplendor. Uma alargada visão da vida em contraste absoluto com a pequenez dos nossos dias.
Aliás, são incontáveis as vezes que escutei a Seomara desabafar, sob o efeito da grande indignação que sempre lhe provoca a mediocridade, o comezinho, a hipocrisia, a intriga, a injustiça, o compadrio: “Eu não sou daqui, eu sou romana, Teresa, eu sou romana!”.
Eu diria antes que Seomara da Veiga Fereira é aquilo que escreve.
Com uma frontalidade, uma exactidão e um talento inegáveis.

DISCURSO FEMININO

Costuma dizer-se que a poesia não tem sexo, mas eu ao longo dos anos tenho vindo a afirmar o contrário, com obstinação. Não estando sózinha nesta certeza... A poetisa Sylvia Plath, perguntou com ironia no seu diário: “como é que a poesia não tem sexo, se até as cerejas tem sexo?” E a mãe da psicanálise, Melanie Klein, garantiu-nos, que “tudo tem sexo na vida”...
E eu acrescento: até os anjos! Os anjos que voam, também, por dentro de «Círculo de Criação Imperfeita», na realidade escrito entre 1968 e 1971, e que hoje reaparece, a fim de nos dar a ver um discurso com um registo mítico e feminino indiscutível: pelos meandros sinuosos da frontalidade, pela sua linguagem captiva e simultaneamente fatal, fiada através de uma sensibilidade feminina, inquieta e ferina, com palavras elaboradas a ponte de crivo e mar de onda, a vir beijar o corpo na sua quentura exposta, como os homens raramente têm usado-ousado escrever, desvendando...

“Vi-te nos tempos imemoriais da planície branca
quando erguias ao Crescente o cordeiro em Sumer.
Trazia no meu colo enrolada a ruiva trança
minha sagrada e forte, quente trança de mulher.


Pentei meus cabelos no vale estranho do Egipto
cobri meus seios de súplicas e de medos
e no Nilo aberto em concha, espuma e mirto
segui teu navio nos meus olhos negros.

Tocaste sem saber a fímbria do meu vestido
quando fugimos de Jerusalém incendiada
Vim ao ocidente brumoso, abrupto, altivo
na linha do oceano cavei a minha estrada.”

Marca da diferença.
Incendiada.
A escritora inglesa Virgínia Woolf, considerava que o pensamento feminino tinha necessidade de uma sintaxe diversa, a conferir às palavras um ritmo particular, com imagens “de fluidez”, de acordo com as múltiplas zonas de prazer oferecidas pelo corpo feminino, na sua plenitude. E acrescentava, sonsa e inteligente: “Não entendo o escândalo que se levanta quando se fala de escrita feminina, pois quanto a mim, essa diferença só enriquece a literatura”.
Literatura, a que Seomara da Veiga Ferreira com a sua escrita lavrada no coração da coerência e da consciência, tem acrescentado vertigem, investigação, rigor e intensidade. Obra que estes poemas, arrisco-me a dizer cabalísticos, cedo abandonados pelo caminho, ironicamente, acabam por vir quando menos se esperava, consolidar:

Com a sua influência histórica.
Com a sua profundidade.
Com a sua atadura de brilho e cintilação de diamante, feita de astros onde a vida e a literatura tomam forma.
Maria Teresa Horta
Lisboa, 4 de Junho de 2008

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Estrelas Mínimas de Fernando Castro Branco, apresentado no Auditório Paulo Quintela - Bragança



Livro de Fernando de Castro Branco apresentado em Bragança
Poesias sobre uma terra difícil, em processo de despovoamento, mas uma terra com a qual se estabelece uma relação luminosa, por mais pequena que seja. Esta poderá ser uma breve apresentação do livro “Estrelas Mínimas”, da autoria de Fernando de Castro Branco, autor nascido em Duas Igrejas, Miranda do Douro. O livro, editado pela Labirinto, vem na sequência de outros dois livros de poesia do mesmo autor e foi apresentado em Bragança no passado dia 29 de Maio. Segundo Fernando de Castro Branco, a obra tem 3 secções. Uma secção, a que dá o título ao livro, “Estrelas Mínimas”, tem este nome “porque em relação às obras anteriores enveredei por uma poesia mais minimalista, mais depurada, e também porque tenta focar uma realidade da nossa terra, da nossa região, diria em decadência, em dificuldades”. Assim, estas sãos pequenas estrelas, “cintilam um pouco debilmente, mas que esperamos possam ressurgir”. A segunda parte do livro, designada “Poemas para um Rio”, procura retratar a relação do autor com o Rio Douro. Tendo nascido no concelho de Miranda do Douro, onde o rio entra em Portugal, Fanando de Castro Branco viveu 22 anos no Porto. “O Rio Douro é um rio que traça o meu percurso, da origem à foz. Há aí uma vivência relacionada com a minha passagem pelo Porto, com as minhas memórias do Porto”, explicou. A terceira parte, a que chama “Turismo a Céu Aberto”, trata-se de “um capítulo duro e de intervenção, nunca abdicando da linguagem poética, mas procurando testemunhar ou denunciar uma realidade das nossas aldeias, sobretudo do Planalto Mirandês, em desertificação, abandono dos campos, da agricultura”. Este é o quarto livro do autor que tem já dois novos livros de poesia em preparação, um para sair em breve, outro para sair em Novembro. “É o meu quarto livro, sendo o terceiro de poesia, um outro é de ensaios. Foi uma aventura em que eu me lancei há três anos e depois pensei que seria algo de efémero, mas está a superar as expectativas”. O livro que sairá no próximo Outono encerrará o ciclo de poemas inspirados na relação do autor com a sua terra. Com o título “Canção dos Horizontes”, esta será uma obra a “duas mãos”, já que além da poesia inclui fotografias de Fernando Cordeiro. Entretanto, ainda antes de Agosto será lançado o Plantas Hidropónicas”, que apresenta uma poesia diferente, ou menos ligada à terra natal.

Ana Preto, in Mensageiro Notícias



Lançamento do livro Ciclo de Criação Imperfeita de Seomara da Veiga Ferreira


Realizou, no passado dia 5 de Junho, pelas 18h 30m, na Livraria Barata da Avenida de Roma, o lançamento do livro Ciclo de Criação Imperfeita de Seomara da Veiga Ferreira.
Numa sala repleta de público caloroso, o Editor, João Artur Pinto, deu as boas – vindas à autora, nesta Editora de Poesia.
Seomara da Veiga Ferreira tem-se dedicado fundamentalmente ao romance histórico que edita na Editora Presença. João Artur Pinto, enunciando as linhas editoriais que norteiam a Editora Labirinto, nas quais salientou o gosto pela poesia, o respeito pelos autores e pelas outras Editoras, tendo felicitado o Dr. Manuel Aquino, um dos Editores da Editorial Presença, pela gentileza da sua presença no evento, indiciando uma salutar e convergente convivência.
A apresentação da obra coube a Maria Teresa Horta, profunda conhecedora da obra da autora que, mais uma vez nos traçou, com a sua acutilância e a sua sensibilidade poética, as linhas de leitura desta obra de poesia.
A leitura de poemas esteve a cargo de Isabel Wolmar.
Seomara da Veiga Ferreira, em breves palavras, traçou uma evolução da história da poesia, desde os tempos proto-históricos até à actualidade, vincando a importância da acção dos sacerdotes da Antiguidade na sua tentativa de contacto com os deuses, tendo sempre como mediadora a poesia, citando os gregos que consideravam os poetas antigos como “Os filhos dilectos dos deuses”.
Terminou a sua intervenção, agradecendo a presença do público, a apresentação da sua amiga Maria Teresa Horta, um dos vultos mais notáveis da literatura actual, e o trabalho impulsionador da poeta e investigadora Maria do Sameiro Barroso, bem como a leitura dos poemas por Isabel Wolmar.
Maria do Sameiro Barroso, membro do Conselho Editorial da Edirora Labirinto e coordenadora da edição, com capa de Júlio Cunha, que evocou as estátuas, as colunas e os templos que se reportam ao tempo histórico para o qual nos remete a poesia da autora, falou informalmente da sua amizade com a escritora e do primeiro contacto com esta obra de poesia, editada na sua juventude, que pode ser apreciada agora, nesta edição, reorganizada e revista, a mas cujo valor poético permanece intacto.






sexta-feira, 6 de junho de 2008

"ROSA INTACTA" de ANTÓNIO RAMOS ROSA



“ROSA INTACTA”
de ANTÓNIO RAMOS ROSA

“Rosa Intacta”, é uma experiência surpreendente dentro da poética de António Ramos Rosa. Apesar de tudo logo reconhecível, pelo vibrante e rigoroso modo dele construir a poesia, a talhar cada palavra, a conceber cada verso, com o seu modo inconfundível. Seguindo um mesmo traço-lastro-rasto: de claridade intensa do sul e do solar, do sal da aragem marítima, trepando rutilante, e talvez abstracto, pelas cordas mordidas pela salsugem dos mares e do sonhado.
Mas em “Rosa Intacta”, e pela primeira vez na poesia de António Ramos Rosa, curiosamente, o que era seguro tornou-se instabilidade. Quer dizer, tudo o que parece inteiro apenas simula sê-lo, e o que em princípio está incólume, indemne, é pelo contrário cousa frágil, franzina, fátua; matéria de partir e de quebrar, dúbia, ambígua na sua presença dúctil e dual, naquilo que surge como sendo corpo no poema e, simultaneamente, corpo do poema. Portanto, poema a transfigurar-se em corpo feminino, mas logo tornando-se, antes de mais, corpo da própria literatura.
No entanto, erótico?
É preciso dizer, que durante a leitura destes poemas escritos há cerca de vinte anos, e que só agora Ramos Rosa reúne, interligando-os num mesmo elo entrançado, num mesmo laço e nó, abraço-baraço, fica por demais evidente haver neste livro uma veemente intenção erótica. E essa será a sua marca de água: diferindo da maioria das obras literárias do género, pela interna interacção recíproca na abordagem dos contrários. Ou seja, nele existe um discurso poético ao mesmo tempo iminentemente corporal e, por que não dizê-lo, de sensualidade amorosa. Organizando-se entre essa sensualidade extremada e a ascese, entre a abordagem do interdito e a transcendência. Entre a animalidade. – “Viva real animal”, como reconhece o poeta – e a imanência.

“ROSA ROSAE”

Discurso do desejo, pois, e da pureza.
Discurso que se assume na corporalidade, perpassando pelo tom daquilo a que Roland Barthes chamou “extrema solidão”.
Mas, sendo “Rosa Intacta” pujante e transbordante, de feminina nudez jubilosa, essa solidão parece anular-se, surgindo no seu lugar a luminosidade da escrita, por seu turno recriando a penumbra fascinante e indiscutível, onde os corpos se fundem, mas igualmente se confundem, vivificam no que lhes é proibido.
E “Rosa Intacta” contém esse júbilo, embora apenas como se fosse vulto na sua forma imprecisa, inflexão erótica caldeada pelo ritualismo, pelo lirismo, de onde se vai desprendendo uma imagética quase arcádica, enredada numa permanente toada ou gemido surdo. Através dos quais o corpo e a sexualidade da amante-amada se apresenta: idealizada, sonhada e fantasmática. Ou seja, sublimada pela voz do narrador-poeta-amante, que nos dá a ver uma mulher elaborada, moldada pelo olhar, pela poesia e pelo seu desejo ardoroso, que a inventa, a canta e a fantasia. Qual Pigmaleão, criando-a, afeiçoando-a, à imagem e semelhança daquilo que o seu imaginário mitifica, no que diz respeito ao entendimento do feminino.
Levando-a a transcender-se.
E mesmo assim permanecendo dual e dividida, entre o carnal e a espiritualidade. Porque, como explicou Lou Adreas Salomé: aquilo que “em nós rodopia de mais corporal e também de mais espiritual, pelo menos na aparência, e de mais supersticioso: liga-se totalmente ao corpo, mas também totalmente ao corpo enquanto símbolo, como hieróglifo fisiológico daquilo que desejaria deslizar na nossa alma pela porta dos sentidos, para neles despertar os sonhos mais audaciosos: misturando pois, a posse e o vago sentimento do inacessível”.

MINHA ÚNICA

Referindo o modo como o desejo e o amor “fazem de nós criadores para lá das nossas forças. Eleva-os ao papel de encarnação de toda a busca, não só entre nós e o nosso objecto de desejo erótico, mas também entre nós e todo o alto valor na direcção do qual projectamos os nossos sonhos”.
“Com um cerrado ímpeto
abraçou-me.
Senti a tensão eléctrica do seu corpo,
a luxuriante suavidade de uma lua,
a verde plenitude da folhagem,
um frenesim sedento,
a lisa e longa voracidade de uma cobra,
a vertigem de uma estrela.”

Metáfora. Transfiguração. Metamorfose.
Portanto, ela, metáfora do sublime, mas terra, mas rosa de beleza intacta, ela sensual e excessiva e sedutora mas mater, mas única. – Minha única, como Abelardo tratava Heloisa nas cartas de amor que lhe enviava. E António Ramos Rosa, em parte, confirma-lhe a exaltação amorosa, neste verso: “Era a primeira mulher, a única, a de sempre”.
Aquela, pois, que é feita do mesmo material das deusas, das parcas, das ninfas, das corças. Aquela que se equipara à natureza, perto dos “incandescentes cimos”, dos rios e do arvoredo, “da argila plenamente solar” e das “redondas dunas”...
Digamos, da própria criação liberta.
Mulher inicial, ou mito-realidade; mitificada a partir da sua essência, num mágico fusionamento: água, fogo, argila.
Musa.
Tão perto e magnífica, mas afinal inacessível. E embora terrena tão distanciada e intocada-intocável. Em “Rosa Intacta”, inserida na categoria dos elementos naturais, emergindo das forças arcaicas

“Quantos prodígios exactos nesse corpo
de simetrias ardentes, de redondas geometrias!
Lavrado pelo vento, modelado pelo fogo,
polido pela água, de incandescentes cimos,
de espumantes funduras sequiosas!
Dir-se-ia um ramo do esplendor o torso oblíquo
onde dois pequenos e redondos seios latejam.
Dir-se-ia um navio pela alta simetria
das suas pernas brancas. E que dizer do rosto?
Talvez três palavras: estrela, alma, água. (...)”

Estrela: portanto, inatingível.
Alma: portanto intocável.
Água: portanto indizível na sua esquiveza fria.



CORPO FEMININO

Na verdade, mais do que mulher comum, natureza. Ou melhor ainda: mais do que corpo feminino: corpo da própria natureza. E que neste livro de António Ramos Rosa, se transmuta, tal como os sentimentos neles incendiados: plenitude, desejo, amor...
Sentimentos que em “Rosa Intacta” se sublimam em criação estética. E como escreveu Roland Barthes: “Fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estética: o mito socrático (amar serve para criar uma multidão de belos e magníficos discursos) e o mito romântico”.
O corpo-mito, portanto, através da fala poética, na simulaçãp da posse perante o anseio e o apelo do inacessível. Na (im)possível instrução da amada; e nesse jogo equívoco, surge igualmente o desejo que ela desencadeia.
Ela, objecto erótico. Aquela pela qual se anseia.
O lado oposto do masculino: Outra. A estranha, a misteriosa, a insondável, o “continente negro” de que falava Freud, a indesvendável, a enigmática acerca da qual António Ramos Rosa escreveu no primeiro poema de “Rosa Intacta”, dedicado, significativamente, “À mulher em carne viva”:
Viva real animal no teu acto soberano
soberana oferenda
nunca vivida antes
sempre e nunca
num único momento ignorado
na minha sede
no meu ardor sem exemplo
no espanto do teu mistério de mulher (...)”
Mas, em “Rosa Intacta”existe uma mulher real, de face límpida e clara, num último poema inesperado, para mim o mais belo de todos os poemas deste livro. De uma carnalidade cintilante, plena, perfeita.

A sua face é a minha lâmpada,
acordo com ela e sigo no meu barco.
Sinto-lhe o hálito e o odor a maresia
a redonda força dos joelhos.
Vou palpando palavras nos seus músculos
ou nos seus duros tendões flexíveis.
Por vezes vou colher um vertiginoso vocábulo
no violento navio das suas ancas.
Quando adormece na sossegada hora
também adormeço sob o doce peso
das suas pálpebras.
A água ondula sob a luz resplandecente
e ela é a tranquila felicidade do instante.
Só a brisa conduz o delicado barco
feito de folhas e de pequenas aves.
Neste maravilhoso instante de sossego
a alma está inteira com o seu amante
plenamente aberta na respiração perfeita.

Erotismo? – torno a perguntar, duvidando. Experiência mística, afirmaria Georges Bataille: “a poesia leva ao mesmo ponto que leva cada forma de erotismo; à indistinção, à confusão de objectos distintos. Ela leva-nos à eternidade, ela leva-nos à morte, à continuidade.”
Ou seja, não importa se “Rosa Intacta” é ou não poesia erótica. Interessa que é excelente poesia.
E termino, citando Rimbaud:
“A poesia é a eternidade. É o mar indo com o sol”.


Maria Teresa Horta


Lisboa, 20 de Outubro de 2007




quarta-feira, 4 de junho de 2008

PRÉMIO DE POESIA DO NÚCLEO DE ARTES E LETRAS DE FAFE

O livro Rosa Intacta, do poeta António Ramos Rosa, editado pela Labirinto, foi o vencedor da primeira edição do Prémio de Poesia do Núcleo de Artes e Letras de Fafe.O Prémio foi instituído como forma de homenagear, promover e divulgar este género maior da literatura portuguesa e destinou-se a galardoar o melhor livro de poesia submetido a concurso e publicado entre 1 de Janeiro de 2006 e 31 de Dezembro de 2007.O Júri integrou o Professor universitário João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva, João Ricardo Lopes, em representação da entidade organizadora e Fernando Pinheiro, em representação da Associação Portuguesa de Escritores.Presidiu, em representação do Núcleo de Artes e Letras de Fafe e sem direito a voto, nos termos do regulamento, o presidente da Direcção, Artur Coimbra.Analisadas as setenta e duas obras concorrentes, provenientes quer de Portugal, quer do Brasil, o que foi devidamente relevado, o Júri deliberou, por unanimidade, atribuir o Prémio à obra Rosa Intacta, de António Ramos Rosa, “considerando tratar-se de uma poesia cheia de beleza, marcada por um erotismo depurado e maduro, onde se evidencia uma mestria com que o poeta trabalha o corpo e a nudez feminina, através de uma reconstrução incessante da perfeição dos seus modelos”.A entrega do prémio, no valor de 2 000 euros, será feita em data a designar oportunamente. António Ramos Rosa é um dos poetas mais importantes da nossa contemporaneidade. Nascido em Faro, a 17 de Outubro de 1924, a partir de 1962 instalou-se em Lisboa, vivendo exclusivamente da literatura, opção que levou Bernard Noël a considerá-lo o “Francisco de Assis da poesia”. Poeta reconhecido, traduzido e premiado internacionalmente, recebeu já inúmeras distinções, como o Prémio do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários (1980), o Prémio PEN Club (1980), o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores (1989), o Prémio Pessoa (1988), o Prémio da Bienal de Poesia de Liège (1991), o galardão Poeta Europeu da Década, atribuído pelo Collège de LEurope (1991), o Prémio Jean Malrieu (1992), entre outros. É condecorado como Grande Oficial da Ordem de Santiago da Espada em 1984 e com a Ordem do Infante D. Henrique em 1997. Em 1999, sob a égide das comemorações dos seus setenta e cinco anos, foi anunciada a criação em Faro da Casa da Poesia António Ramos Rosa. A 17 de Outubro de 2003 foi agraciado com um Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Faro. Criador incansável e genial, autor de obras únicas desde O Grito Claro, o seu primeiro livro em 1958, escreveu mais de oitenta livros de poesia, para além de uma impressionante participação no domínio do ensaio e da tradução.

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