segunda-feira, 16 de junho de 2008

"Cartas Poéticas" Entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira


“CARTAS POÉTICAS” Entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira

Dois poetas – António Ramos Rosa, já hoje considerado o mais premiado dos poetas portugueses vivos e Manuel Madeira, outra referência marcante da poesia moderna portuguesa - tornam públicas 134 cartas, das muitas que trocaram entre si, ao longo da vida.
São textos poéticos de reflexão, de auscultação, de intimidade, nascidos de um conhecimento mútuo destes dois poetas. São epístolas iluminadas por uma confidencialidade deliberada, expressão do estranho modo de conceber e partilhar, assente na poeira dos dias e no anseio da luz contemporânea da suprema arte de revelar os seres e as coisas.
De uma forma quase diarística, ambos evocam o tempo que foi, naquele presente/passado feito de cumplicidade, de modo a permitir estremecer o instante de futuro, vivido pessoalissimamente, de um futuro que ainda não o é, e sempre se colocou como saudade do presente.
“Os passos que damos vão através do tempo, / ou seja do que não é ainda e está a ser já / É este vazio que se preenche que é o tempo, / que não é vazio em si mas para nós” (ARR)
“Consubstanciamos o passado e o presente / (…) na trajectória imemorial do tempo” (MM)
Ramos Rosa e Manuel Madeira invocam vivências traduzíveis, lugares da infância, estações da adolescência, planos de acção e de lazer, numa mesma perspectiva de ideologia, porventura retidos numa visão quase esquecida e secreta, metaforicamente trazida ao instante da escrita de uma forma real e plena de autenticidade.
E nessa rememoração perseguida, perscrutante, nesse tacteamento sensitivo relevam afloramentos de impenitentes revoltas juvenis, de um tempo remoto de não regresso e ainda por explicar, que devolve a todo o momento a nostalgia de um outro, mais “medonho”, que “nos apertava os pulsos e tolhia os movimentos”, um tempo em que “os livros chegavam por invisíveis correios”, um tempo de balanço dos rescaldos, de desejos não enunciados, de um contrariar insolvente, um tempo estriado na vida resistente.
Nesse trazer de novo, eis duas vidas consubstanciadas num conhecimento contemplativo, de reflexão, de impressionabilidade.
Em Ramos Rosa deparamos com um saber poético que o leva a olhar com desvanecimento o futuro da poesia sob o signo do “fazer poético”, preponderando no poema aquilo que mais seguramente habilita um poeta a sê-lo ao nível dos grandes, a fidelidade à palavra que no homem é a verdade última do sangue, da existência e da alma.
Em Manuel Madeira, sobressai a metaforização tácita, construída sobre um desenho leve, quase musical, seguidor de contornos indefinidos, a adjectivação eloquente e procurada, a fulgurante inebriação das ideias exposta com a simplicidade de quem adoptou a poesia como companheira de uma vida.
A obra deste poeta, revela uma espécie de metempsicose panteísta, toda ela feita de fidelidade à terra, onde mergulham as raízes mais fundas e de onde tudo volta a emergir para uma reconciliação universal, para uma suprema harmonia entre a luz e a sombra, plenitude e carência, presença e ausência.
Ambos os poetas correspondentes estão há muito no limite físico da poesia, sob o signo da profecia e da interrogação.
O que eles realizam, esse transformar a existência em existência poética, esse apoderar-se dos poderes que talvez só a mitologia possa conferir apenas a um semideus, e tentarem dominar com eles as várias faces de um destino, porventura adverso, até converter toda a realidade em realidade poética não é uma aventura vulgar para qualquer criador de arte.
Esta poderosa aventura, que encetaram e percorrem, é uma forma subtil de apagar os poderes temíveis que não deixariam sossegar o Homem se ele se atrevesse a imaginá-los reais.
Assim, no real convertido em mito tornava-se impossível imaginar que o mito pudesse ser real. É que, desde tempos imemoriais, cada poeta foi a verdade da sua própria poesia e com ela preparou os caminhos de muitos outros poetas que lhes sucederam.
Hoje, carteando-se, António e Manuel trazem-nos a poesia através de uma coloquial lembrança com o leitor, correndo todos os riscos de encarnarem a imaginação na vida, e todos os perigos, que desse gesto possam derivar.
Nestas “Cartas Poéticas” vive o primado do espírito poético, numa permanente interrogação e constatação, estreito espaço onde a uma folha se achega outra, onde cada pausa é interrompida por nova carta, nova ideia vem espreitar um lamento, novas certezas vingam dúvidas que porventura possam existir.
Aqui, a palavra poética assume uma presença vigorosa, mas também encantatória, mágica, activa, subtilmente reveladora e superante.
São 134 cartas em concatenação precisa, sem desvio do olhar, sem se deixar de sentir o respirar que as anima, onde cada autor sucede o outro, sucedendo-se a si mesmos, num discurso poético rigorosamente construído, afectivamente correspondido.
Nestas missivas, Ramos Rosa e Manuel Madeira são os leitores por excelência deles próprios. Acompanhando-os, estamos nós, os leitores das suas obras, em particular destas cartas.
Temos, pois, dois poetas maiores. Duas almas de eleição.
Com António e Manuel estamos perante uma poética baseada na atitude testemunhal, na revivência do “eu” e do “tu” no que a epistolografia pode exprimir, e que implica necessariamente a condição intersubjectiva do discurso, o conhecimento da própria criação, a comunidade e a comunhão dos sujeitos no horizonte da expressão poética. E o testemunho pressupõe a fidelidade como princípio na contínua relação transformadora do sujeito com os outros.
“Vejo o sol mas não sei se quero ver o sol / se ele nada me sugere para além da sua luz de cal / e assim sinto o vislumbre de um logro, um luminoso sofisma. / Prefiro estar no interior de uma nuvem silenciosa / e ver a terra na sua ondulação azul / com os seus deslumbrantes pomares as suas tranquilas florestas / como se ela fosse a mão pródiga de veias solares / e de ramos sinuosamente entrelaçados / como uma fêmea nua de voluptuosa pujança.”
(…) “Não, o sol não chega para apagar a monotonia cinzenta / deste árido círculo em que perdemos o rumo / dos vergéis azuis e dos estuários brancos” ARR (51)
“Ter a margem de um rio tranquilo para companhia / é uma ajuda inestimável e eu vou contigo nessa caminhada / acompanhados pelos eucaliptos e pelas nuvens / meditando em silêncio como nós e o vento que não fala” (41)
(…) “Espero alcançar a compreensão do caos / dissolver-me em estilhas na amplidão do espaço” MM (27)
Por esse tempo, o tempo epistolográfico de António e de Manuel, o fogo da criação esteve para além das privações, do exílio das profundezas, das grandes causas pelas quais estes dois poetas lutaram, do sentimento do abandono que experimentaram nos seus próprios percursos, em termos artísticos e de concidadania.
Eles foram, o que eles, mesmos, se fizeram e são.
Fiéis a eles próprios, e às suas ideias, coerentemente porfiando em campos de acção diversos, conscientes das suas obrigações de expressão, de divulgação da mensagem e da palavra poética.
Criadores de arte por excelência, na obra de qualquer destes poetas, são visíveis, uma experiência poética depurada, um crescimento cada vez maior de pendor meditativo e uma concisa e rigorosa perfeição da linguagem. Eis, por conseguinte, exemplificado, um novo modo de dizer, talvez o dizer até ao “grau zero” da linguagem e suprimido pelo não dizer, como nos deixou dito Rolland Barthes.
A cada carta, carta que se lê, carta que se responde, o acto criativo nasce como onda sufocante de seiva, como movimento inteligível na aragem da tarde e nos ombros da noite, metamorfoseando-se continuamente no texto poético, essa morada última das sombras dos mitos.
E entra, então, como coisa estranha e nova nesse tempo volvido, líquido, em que “havia cegos e surdos que falavam / e nos queriam cegar e ensurdecer” (ARR) (28), e entra igualmente através do olhar como mediador da consciência, matéria em dissolução, poeira dos memorializáveis momentos que se grita, acarretando a esperança de se poder restituir à luz essa ânsia dolorosa de penetrar o segredo das coisas, da descoberta finita do infinito.
Os poetas correspondem-se, lembrando o deslizar sonante e misterioso da adolescência, da juventude que exigia o sacrifício sublime da água, o enleio esgotante e mitigado de um tempo de luta, quando a vida se devia abrir nas páginas escorreitas e alvas de um livro e apetecia fugir à rotina dos dias, ao corrupio enfadonho das horas, encadeados eles mesmos pelas luzes que os absorviam.
Por esse tempo…
Por esse inolvidável e criativo tempo de descoberta… sente-se como Madeira o afirma, o inadiável “apelo das vozes distantes”…
ARR - “Era um horizonte de palavras novas, de árvores reverentes. / escrevíamos panfletos que às vezes nos fugiam dos bolsos / em revoadas que se confundiam com as aves. / Acampávamos em pinhais, cantávamos e dançávamos, / saudando o sol de um novo dia / e às vezes a polícia surpreendia-nos / com as metralhadoras aperradas contra nós. / Devorávamos livros proibidos apaixonadamente / reunidos em exíguos quartos ou solitariamente. / Não importa se muitos se enganavam adorando um déspota como um deus, / porque a verdade estava na sua oposição / à tirania que nos roubava o sol, / à liberdade e à justiça da palavra viva. / Vivemos duramente com obstinada paixão / mas vivíamos solidários e lúcidos na sombra / e a fraternidade era a nossa força e o prémio da nossa luta. / Vencemos finalmente, mas a madrugada da nossa liberdade / foi apenas um momento. O que se seguiu depois / é um sistema que não sabemos como combater / porque a sua teia é anónima, de uma violência esparsa / que nos impede a defrontação / com os seus disfarces e os seus estratagemas.”
Na frente do poema segue a luz, a plenitude tracejante do seu próprio movimento originário, o aceno familiar à ansiedade juvenil, às manhãs sem memória, à maturidade outonal e doirada da lembrança.
Nestas cartas, deparamos com a alegria do que se descobre e é exposto, uma serena alegria imorredoira. É que a poesia transcende – sempre, sempre - a simples comunhão a dois.
MM – “Vem de muito longe a nossa amizade fraterna / querido amigo António e o tempo então era jovem e sorria / e brincava desfolhando pétalas de alegria que nos atirava / por cima dos carcomidos muros que o ocultavam / (…) Manietados pelo medo e pela sombra da pide / que nos perseguia em plenos passeios / como aconteceu uma vez em Silves feitos prisioneiros / escondíamos os livros proibidos no chão dos quintais / e engolíamos papéis comprometedores em pedacinhos / durante os interrogatórios simulando soluços iludindo os esbirros / mas explodíamos em palavras e gestos eufóricos / quando nos encontrávamos casualmente na rua / como se tivéssemos encontrado a felicidade no inóspito deserto / Éramos tímidos e pobres mas trazíamos nos bolsos da alma / virtuais quantias fabulosas de valor incalculável” (…) “ que agora distribuíamos clandestinamente / em maços de panfletos cantando a liberdade / contra a ignorância e os seus dominantes exploradores / que viam em nós inimigos a abater” (…) (51ª Carta)
A perseguição política sangra abertamente no leito deste poema, verdadeiro alerta aos seres e aos olhares, invocando a dolorosa e combativa epopeia contra as forças fascistas.
Por esse tempo de juventude, estes jovens penetravam o segredo das coisas, sentiam a evocação dos sentimentos, de um acontecer que acabou por se ir estruturando nos dias. Vigiavam as enormes distâncias que vão das imagens às ideias, da história humana e da liberdade coarctada, a evocação do tempo das religiões dos mistérios, das que estão a morrer há muitos séculos, das que só os poetas entendem. É que muitos dos sentimentos e dos projectos dessas manhãs que percorreram as vidas destes dois autores na “imensa toalha do firmamento inteiramente desdobrada / numa plenitude que superava toda a sabedoria e era mais pura do que todas as preces” (MM) (12) vieram muito mais tarde a coincidir com os projectos de muitos de nós.
Cada um recorda-se, e recorda a imagem do tempo próprio e o tempo/ imagem que lhe pertenceu, trecho a trecho, carta a carta, deslizando pela espiral dos tempos, envolvido nas águas ocultas do desabrochar das consciências, em especial da consciência política que os ia invadindo.
E em cada elegia singular, pela dimensão poética, surge esse campo de sugestão e afectividade das palavras, as palavras no seu poder supremo, tal como as referiu Cecília Meireles do outro lado do Atlântico: “Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa! Ai, palavras, ai palavras, que estranha potência a vossa!”
Nestes textos epistolares, a variação referencial das palavras, com os seus ritmos, as suas intenções, passa pela sensibilidade plena do sentido, pela entoação que ficou perdida, pela sua própria memória colectiva e individual, acompanhando os movimentos da metáfora simbólica.
No entanto, quer na poesia de António, quer na de Manuel, surgem claridades - mais luminosas do que a água que espelha a luz – claridades que se avizinham na curva descendente dos dias passados, provocando na sequência epistolar um sentido de plenitude e de esperança, passados que foram tempos do maravilhoso, onde a invenção da dor, do intimismo e do constrangimento não deveriam ter tido lugar.
Na leitura desta estranha e sedutora poesia, ora matinal e clara como a adolescência, ora imbuída de toda a elegia do pretérito imperfeito, sentimo-nos tocados por uma densidade tão intensa, quanto à própria poesia entre nós tem sido possível atingi-la. É que aqui neste brotar memoriável, todas as raízes da inquietação e da procura da forma poética souberam impor uma humana medida a todos os recursos modernos da poesia. Nestas últimas décadas, a obra de António Ramos Rosa foi pontualmente frequentada e prezada por poetas e críticos, e por numerosos leitores.
Existe uma quase unanimidade em relevar em António a inventiva imagística, o fascínio do secreto e do simples, o simbólico constante, o tratamento rítmico ou melódico do verso, a sequência dedutiva oralizante, o exercício dos sentidos (vista, ouvido, tacto), as emoções elipticamente condensadas, sensitivas, sensualmente harmónicas e afectivas.
Tudo isto fez da poesia de Ramos Rosa, uma poesia de requintada qualidade artística, verdadeira bíblia do conhecimento poético.
Manuel Madeira é, de outro modo, um caso único na Poesia Portuguesa. Desde sempre poeta, só muito tardiamente veio a publicar parte da sua obra, com a saída do livro a que deu o título “No Encalço do Real Inalcançável”, antologia de toda uma vida poeticamente vivida. Em Manuel, a poesia surge límpida e fluente, possuída de uma rara perfeição imagística, acompanhada de um fino e cortante sentido de musicalidade verbal, uma poesia que se pode classificar como discreta e serena, por vezes desenhada palavra a palavra, sem preocupações estilísticas, sem excessos de significação.
Manuel Madeira apresenta-se ora reflexivo, ora inconformado, poeta da nostalgia da unidade poética que pretende transmitir, semeador de “grãos de silêncio que hão-de germinar em courelas de luz”, fazendo do acto poético um contacto luminoso com a criação. Perseguindo a palavra e a sua transfiguração, ciente que só a poesia pode fertilizar o deserto da existência, ele próprio, o poeta, confessa a finitude do ser na simplicidade e na mágoa do olhar: “ Sou um pouco do ar que se respira / pequeno grão de areia sobre o chão ignoto / agulha de pinheiro em breve cinza…”
Este discurso poético a duas mãos – as cartas trocadas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira - é algo de singular no nosso tempo, espelho de fascínio e complexidade, colóquio pensante, osmose quase perfeita entre realidade e palavra, assunção do verso como expressão intimista, lugar supremo de rememorações e vigílias. Para além do enriquecimento que a sua leitura poderá proporcionar a todos nós, estas “Cartas Poéticas” são - já - um monumento ímpar na Poesia Epistolar portuguesa, do nosso tempo.
VARELA PIRES
Faro, 21 de Maio de 2008

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