No dia 28 de Novembro, às 16h, na Livraria Capítulos Soltos, em Braga, decorreu a apresentação da colectânea de contos Encantos Agrestes de José Salgado Leite. O espaço, uma livraria, recentemente aberta ao público, proporcionou um diálogo atractivo e caloroso aos numerosos leitores que acorreram ao evento.
Trata-se de um conjunto de quinze crónicas que o autor, que tem cultivando a poesia e a crónica, contando com vários prémios literários, revela terem sido baseadas em factos reais, algumas denotando um acentuado cariz auto-biográfico. Entre elas, destaca o conto a que deu o título “O Fecisco”, dedicada a José Teixeira Gomes Machado, “Incansável promotor da cultura popular, destacando-se nomeadamente no folclore, tanto na vertente das danças e cantares, como no estudo e preservação dos trajes regionais do baixo Minho” e, segundo as palavras do autor, fundador da “Rusga de S. Vicente há quase 45 anos, hoje um dos agrupamentos populares mais conceituados da cidade”.
Sobre o autor e a sua obra, falou-nos o escritor Cláudio Lima, cujo texto da apresentação passamos a transcrever:
Temos entre nós, afortunadamente, um punhado de escritores que, seja através da ficção, da pesquisa ou da crónica registadora, vai contribuindo regular e eficazmente para preservar e transmitir a memória das nossas gentes e das nossas coisas; escritores que assumem o testemunho inestimável e responsabilizante de seus próceres do passado, enriquecendo-o num processo aberto e fecundo de análise, interpretação, convergência/divergêrncia dialéctica e interactividade. Valores de hoje que sabem onde as melhores fontes, os mais preciosos filões da geografia cultural do Minho: José Augusto Vieira, Avelino de Jesus Costa, Conde d’Aurora, o trio de Sampaios: Alberto, Gonçalo e António Rodrigues; Martins Sarmento, Abel Salazar, Manuel Monteiro, etc.; tantas e tão exímias figuras que através das várias áreas do saber e de uma dedicação sem limites estudaram a nossa vida comunitária ao longo dos tempos, desenrolada desde os picos agrestes dos nossos montes, às viçosas veigas dos nossos vales.
Mas é de ficção que hoje tratamos. Sem dúvida, também ela vinculada à nossa realidade, às nossas tradições, ao nosso devir. Uma ficção que, hoje como ontem, vai alimentar-se ao mais profundo do nosso húmus colectivo, nele haurindo as virtualidades peculiares que o tempo consolidou, aquela energia inesgotável e aquele atavismo arreigado que fez e faz de nós personagens vivas, protagonistas interventivos, agentes tenazes na preservação de valores e impulsão de progresso no contexto regional e nacional. Ficção que regista nomes prestigiados do passado como Teixeira de Queiroz, Tomaz de Figueiredo, Manuel de Boaventura, Conde de Arnoso, Júlio Brandão, Luís de Almeida Braga, Maria Ondina Braga, João Marcos, Sá Coimbra, etc., — um longo e inestimável elenco que vai engrossando com a contribuição, qualitativa e quantitativamente expressiva, dos nossos prosadores ficcionistas de hoje, de que refiro alguns exemplos, sem menosprezo pelos muitos que terei de omitir. Couto Viana (que só numa fase avançada da sua fecundíssima vida literária desbloqueou a veia de contista), Maria do Pilar Figueiredo, João Lobo, Fernando Pinheiro, Jaime Ferreri, José Abílio Coelho, Pompeu Miguel Martins, Luisa Monteiro, Orlando Ferreira Barros.
Trata-se de um conjunto de quinze crónicas que o autor, que tem cultivando a poesia e a crónica, contando com vários prémios literários, revela terem sido baseadas em factos reais, algumas denotando um acentuado cariz auto-biográfico. Entre elas, destaca o conto a que deu o título “O Fecisco”, dedicada a José Teixeira Gomes Machado, “Incansável promotor da cultura popular, destacando-se nomeadamente no folclore, tanto na vertente das danças e cantares, como no estudo e preservação dos trajes regionais do baixo Minho” e, segundo as palavras do autor, fundador da “Rusga de S. Vicente há quase 45 anos, hoje um dos agrupamentos populares mais conceituados da cidade”.
Sobre o autor e a sua obra, falou-nos o escritor Cláudio Lima, cujo texto da apresentação passamos a transcrever:
Temos entre nós, afortunadamente, um punhado de escritores que, seja através da ficção, da pesquisa ou da crónica registadora, vai contribuindo regular e eficazmente para preservar e transmitir a memória das nossas gentes e das nossas coisas; escritores que assumem o testemunho inestimável e responsabilizante de seus próceres do passado, enriquecendo-o num processo aberto e fecundo de análise, interpretação, convergência/divergêrncia dialéctica e interactividade. Valores de hoje que sabem onde as melhores fontes, os mais preciosos filões da geografia cultural do Minho: José Augusto Vieira, Avelino de Jesus Costa, Conde d’Aurora, o trio de Sampaios: Alberto, Gonçalo e António Rodrigues; Martins Sarmento, Abel Salazar, Manuel Monteiro, etc.; tantas e tão exímias figuras que através das várias áreas do saber e de uma dedicação sem limites estudaram a nossa vida comunitária ao longo dos tempos, desenrolada desde os picos agrestes dos nossos montes, às viçosas veigas dos nossos vales.
Mas é de ficção que hoje tratamos. Sem dúvida, também ela vinculada à nossa realidade, às nossas tradições, ao nosso devir. Uma ficção que, hoje como ontem, vai alimentar-se ao mais profundo do nosso húmus colectivo, nele haurindo as virtualidades peculiares que o tempo consolidou, aquela energia inesgotável e aquele atavismo arreigado que fez e faz de nós personagens vivas, protagonistas interventivos, agentes tenazes na preservação de valores e impulsão de progresso no contexto regional e nacional. Ficção que regista nomes prestigiados do passado como Teixeira de Queiroz, Tomaz de Figueiredo, Manuel de Boaventura, Conde de Arnoso, Júlio Brandão, Luís de Almeida Braga, Maria Ondina Braga, João Marcos, Sá Coimbra, etc., — um longo e inestimável elenco que vai engrossando com a contribuição, qualitativa e quantitativamente expressiva, dos nossos prosadores ficcionistas de hoje, de que refiro alguns exemplos, sem menosprezo pelos muitos que terei de omitir. Couto Viana (que só numa fase avançada da sua fecundíssima vida literária desbloqueou a veia de contista), Maria do Pilar Figueiredo, João Lobo, Fernando Pinheiro, Jaime Ferreri, José Abílio Coelho, Pompeu Miguel Martins, Luisa Monteiro, Orlando Ferreira Barros.
E José Salgado Leite, autor de quem aqui saudamos mais um livro: Encantos Agrestes. Vem de terras de Montelongo (Cepães, Fafe, 1948) e credencia-o, se não uma obra autónomo muito extensa, uma vasta e valiosa colaboração em antologias e outros projectos colectivos, assim como em inúmera imprensa regional e nacional. Polivalente, tem na música e no teatro, sobretudo, espaços alternativos de afirmação própria e de intervenção no meio cultural em que se encontra inserido. Antes destes Encantos Agrestes, José Salgado Leite publicou individualmente um livro de poesia, Fragmentos do Quotidiano (1998) e outro de contos, Memórias de um Rio (1999). Já lá vão dez anos!
Num breve, mas denso e perspicaz Prefácio à obra agora em apreço, Artur Coimbra, ilustre poeta e investigador fafense, a determinado passo diz o seguinte: “(…) estamos em presença de uma obra adulta, que vai no sentido da confirmação do autor como um fabuloso contador de histórias. São contos sentidos, alguns de manifesto cunho autobiográfico, outros bem conseguidos exercícios de criação ficcional. Genericamente são estórias de vida — da sua e das que lhe são ou foram próximas. Relatos da memória da sua aldeia natal — Cepães — e da sua infância feliz (…). Crónicas das suas vivências em Angola, dos lugares para onde foi obrigado a ir combater, a contragosto (…)”.
Por sua vez, o Autor, em Duas palavras essenciais introdutórias, onde memoriza a génese e o estímulo destes textos, lembra o critério ordenador adotado: “O discernimento da sua apresentação é estritamente de ordem cronológica. Assim, o primeiro (Refúgio dos Infelizes) data de 1967 e o último (De Braga a Mondoñedo) de 2005. Trinta e oito anos de distância os separam”.
Temos pois dois contributos preciosos para situar no tempo histórico e no cânone narrativo este conjunto de textos, a que o Autor confere o rótulo genérico de contos. Quanto ao tempo histórico, num cômputo de quase quatro décadas, ele é evidente e determinante nas motivações que subsistem nesta dezena e meia de textos. Com efeito, eles atravessam e registam um tempo português que assiste aos últimos estertores de um regime totalitário e ao emergir de um outro, libertador e libertário, balizado pelo 25 de Abril de 1974. Quanto ao rótulo aglutinador dos diversos e heteróclitos textos, — contos — , remeta-se ao parágrafo acima transcrito de Artur Coimbra onde ele, com argúcia interpretativa, fala em “contador de histórias”, “contos”, “estórias”, “relatos da memória”, “crónicas das suas vivências”. Uma visão disjuntiva de um conjunto considerado de contos, na ótica de quem os escreveu e catalogou. Aceitemos a heterogeneidade apontada pelo crítico, até pelo facto de ela em nada apoucar ou desmantelar uma certa homogeneidade intrínseca na revelação da mundividência do Autor.
Seria longa e provavelmente desinteressante para uma fruição posterior, resumir aqui cada uma destas quinze peças. Obrigar-nos-ia a longos parágrafos sobre várias temáticas dominantes: a mísera condição social dos nossos pescadores e trabalhadores rurais (Refúgio dos infelizes, Reviver o passado, A vendedeira de castanhas, A bicicleta); a guerra colonial, suas cicatrizes e suas sequelas ( Corações tristes, O desertor, O Malaquias Cambuta); uma crescente e afirmativa consciência social das populações vítimas de exploração (Mais uma página de Luta, A ovelha tresmalhada, O bufo Marteladas, As voltas da Conga). As quatro últimas do livro, não cabendo, em rigor, em qualquer das categorias ou universos descritos, merecem, porém, igual referência. São elas A menina enjeitada, título e enredo tipicamente camilianos, em que o Autor faz uma incursão histórica pela nossa emigração para o Brasil no séc. XVIII, em plena agudização das lutas liberais; O Fecisco, figura típica da estúrdia bracarense, cicerone aplaudido pela malta estudantil em noctívegas deambulações pelos tasquinhos do burgo; Três noites no Soajo, que parte de uma verosímil viagem de estudo, por parte de uma estudante coimbrã, rumo àquele povoado típico do Minho serrano, para derivar para um complicado e absorvente envolvimento de almas penadas e rituais de resgate a que se viu compelida; finalmente, De Braga a Mondoñedo, é um dos textos em que a designação de conto menos se apropria. Começa por historiar o bispado de Dume e sua destruição pela Moirama em meados do séc. IX e a viagem de estudo que o Autor (na primeira pessoa) empreendeu à localidade galega de Mondoñedo, para onde, com autorização régia, o bispo-abade Sabarico transferiu a sede dumiense, por força da ocupação sarracena. Aqui, como em muitos outros momentos, registemos a apetência e a aptidão do Autor para escavações de natureza histórica.
Mas não só; ao longo de mais de duzentas páginas de que se compõe o livro, vinculados por uma escrita sóbria e diligente, muitos são os momentos em que o Autor projecta no fluxo narrativo, sem eufemismos nem redundâncias, as suas convicções sócio-políticas, os seus valores ético-humanitários. Poder-se-á dizer que o sentimento de justiça ou da ausência dela, constituem-se em preocupação e em denúncia dominantes. Sem configurar um livro-libelo, um quadro ficcionista ao serviço de estratificações ideológicas, não erraremos se apontarmos frequentes laivos do realismo gorkiano de A Mãe ou do neo-relismo de Soeiro Gomes de Esteiros, entre outros. Deparamos aqui, efectivamente, com figuras humildes, exploradas e espoliadas da sua dignidade, atiradas para um quadro da mais espinhosa sobrevivência e desiludidas da mais ténue réstia de esperança.
Muito de real e memorizado carreou José Salgado Leite para este livro; livro que não é inocente nem inócuo. Em contos mais regulares e noutros mais resvalados para géneros tais como a biografia ou a crónica, — é sempre um escritor empenhado que se afirma e impõe; um espírito que procura estar em sintonia com o seu e nosso tempo, seja na denúncia de todos os atropelos à dignidade humana, seja na solidariedade com as vítimas deles.
Braga, Nov. 2009
Cláudio Lima
Num breve, mas denso e perspicaz Prefácio à obra agora em apreço, Artur Coimbra, ilustre poeta e investigador fafense, a determinado passo diz o seguinte: “(…) estamos em presença de uma obra adulta, que vai no sentido da confirmação do autor como um fabuloso contador de histórias. São contos sentidos, alguns de manifesto cunho autobiográfico, outros bem conseguidos exercícios de criação ficcional. Genericamente são estórias de vida — da sua e das que lhe são ou foram próximas. Relatos da memória da sua aldeia natal — Cepães — e da sua infância feliz (…). Crónicas das suas vivências em Angola, dos lugares para onde foi obrigado a ir combater, a contragosto (…)”.
Por sua vez, o Autor, em Duas palavras essenciais introdutórias, onde memoriza a génese e o estímulo destes textos, lembra o critério ordenador adotado: “O discernimento da sua apresentação é estritamente de ordem cronológica. Assim, o primeiro (Refúgio dos Infelizes) data de 1967 e o último (De Braga a Mondoñedo) de 2005. Trinta e oito anos de distância os separam”.
Temos pois dois contributos preciosos para situar no tempo histórico e no cânone narrativo este conjunto de textos, a que o Autor confere o rótulo genérico de contos. Quanto ao tempo histórico, num cômputo de quase quatro décadas, ele é evidente e determinante nas motivações que subsistem nesta dezena e meia de textos. Com efeito, eles atravessam e registam um tempo português que assiste aos últimos estertores de um regime totalitário e ao emergir de um outro, libertador e libertário, balizado pelo 25 de Abril de 1974. Quanto ao rótulo aglutinador dos diversos e heteróclitos textos, — contos — , remeta-se ao parágrafo acima transcrito de Artur Coimbra onde ele, com argúcia interpretativa, fala em “contador de histórias”, “contos”, “estórias”, “relatos da memória”, “crónicas das suas vivências”. Uma visão disjuntiva de um conjunto considerado de contos, na ótica de quem os escreveu e catalogou. Aceitemos a heterogeneidade apontada pelo crítico, até pelo facto de ela em nada apoucar ou desmantelar uma certa homogeneidade intrínseca na revelação da mundividência do Autor.
Seria longa e provavelmente desinteressante para uma fruição posterior, resumir aqui cada uma destas quinze peças. Obrigar-nos-ia a longos parágrafos sobre várias temáticas dominantes: a mísera condição social dos nossos pescadores e trabalhadores rurais (Refúgio dos infelizes, Reviver o passado, A vendedeira de castanhas, A bicicleta); a guerra colonial, suas cicatrizes e suas sequelas ( Corações tristes, O desertor, O Malaquias Cambuta); uma crescente e afirmativa consciência social das populações vítimas de exploração (Mais uma página de Luta, A ovelha tresmalhada, O bufo Marteladas, As voltas da Conga). As quatro últimas do livro, não cabendo, em rigor, em qualquer das categorias ou universos descritos, merecem, porém, igual referência. São elas A menina enjeitada, título e enredo tipicamente camilianos, em que o Autor faz uma incursão histórica pela nossa emigração para o Brasil no séc. XVIII, em plena agudização das lutas liberais; O Fecisco, figura típica da estúrdia bracarense, cicerone aplaudido pela malta estudantil em noctívegas deambulações pelos tasquinhos do burgo; Três noites no Soajo, que parte de uma verosímil viagem de estudo, por parte de uma estudante coimbrã, rumo àquele povoado típico do Minho serrano, para derivar para um complicado e absorvente envolvimento de almas penadas e rituais de resgate a que se viu compelida; finalmente, De Braga a Mondoñedo, é um dos textos em que a designação de conto menos se apropria. Começa por historiar o bispado de Dume e sua destruição pela Moirama em meados do séc. IX e a viagem de estudo que o Autor (na primeira pessoa) empreendeu à localidade galega de Mondoñedo, para onde, com autorização régia, o bispo-abade Sabarico transferiu a sede dumiense, por força da ocupação sarracena. Aqui, como em muitos outros momentos, registemos a apetência e a aptidão do Autor para escavações de natureza histórica.
Mas não só; ao longo de mais de duzentas páginas de que se compõe o livro, vinculados por uma escrita sóbria e diligente, muitos são os momentos em que o Autor projecta no fluxo narrativo, sem eufemismos nem redundâncias, as suas convicções sócio-políticas, os seus valores ético-humanitários. Poder-se-á dizer que o sentimento de justiça ou da ausência dela, constituem-se em preocupação e em denúncia dominantes. Sem configurar um livro-libelo, um quadro ficcionista ao serviço de estratificações ideológicas, não erraremos se apontarmos frequentes laivos do realismo gorkiano de A Mãe ou do neo-relismo de Soeiro Gomes de Esteiros, entre outros. Deparamos aqui, efectivamente, com figuras humildes, exploradas e espoliadas da sua dignidade, atiradas para um quadro da mais espinhosa sobrevivência e desiludidas da mais ténue réstia de esperança.
Muito de real e memorizado carreou José Salgado Leite para este livro; livro que não é inocente nem inócuo. Em contos mais regulares e noutros mais resvalados para géneros tais como a biografia ou a crónica, — é sempre um escritor empenhado que se afirma e impõe; um espírito que procura estar em sintonia com o seu e nosso tempo, seja na denúncia de todos os atropelos à dignidade humana, seja na solidariedade com as vítimas deles.
Braga, Nov. 2009
Cláudio Lima